sexta-feira, 30 de março de 2018

Desencantada





O sorriso dela era para ele, atrás da objectiva.

O amor não deixa espaço para as coisas práticas da vida.
Não aquele, ainda inicial.
Sem rotinas, com a liberdade presa no outro, como se do outro dependesse o próprio respirar, voando entre sonhos e alguns projectos.
Sem amarras, mas de mãos dadas.

Um dia, entre palavras vagas, ele disse-lhe que a chama morrera.
Ela morreu por dentro.

Até as primeiras flores desabrocharem e uma força invisível a empurrar para todas as ruas, onde existiam saídas.



Ana de Melo

Eternamente Douro-386

Foto: josé alfredo almeida

Eternamente Douro-385

Foto:josé alfredo almeida

Olhar o arco-íris

Foto: josé alfredo almeida

terça-feira, 27 de março de 2018

Eternamente Douro-379

Foto:josé alfredo almeida

Eternamente Douro-378

Foto: josé alfredo almeida

Crónica triste da minha aldeia




"Relanceio os olhos para os meus montes e os meus vales, o meu rio e o meu Marão. Toda esta gente me diz adeus. Fisionomias imensas, austeras e altivas, bondosas e amigas, sobrepõem-se a todo o redor, como fazem quando eu chego e quando eu parto e um vozear indefinido e longínquo acalenta-me como o do mar ao seu marinheiro. (...) Os meus olhos vão-se desprendendo como os braços, quando outros braços deixam e como a minha vida aqui se passou muito tempo estas vinhetas acordam-me a memória, e a ronda do passado começa, variada, insistente, comovida e bela.

Ao dar a volta ao Vale de Locaia, olho ainda em redor, abrangendo tudo, faço vista de arrasto recolhendo tudo, toda a minha terra e fecho este mundo à chave no meu coração."



Pina de Morais in Jornal de Notícias
( Escritor duriense nascido em Valdigem, Lamego, 1889 e falecido no Porto, 1953)

Os livros fazem acontecer coisas

Foto:josé alfredo almeida

"Os livros fazem fazer coisas. Divórcios, poemas. O amor também. Ele gosta de livros. Ela gosta dele. Oferece-lhe livros. Ele lê os livros que ela lhe oferece deitado no lado esquerdo da cama. Ela não lê, antes medita: Para que lado se deita o amor? Por qual narina respira melhor? Ela levanta-se do lado direito da cama e veste o robe de seda púrpura. Prepara-se para o afecto. Ele continua a ler: prefere a carne e o odor forte de certas frases. Adormece com o livro aberto a fazer o cume do coração. Com a página 63. Ela destapa-lhe o coração, lê uma frase aleatória. Rasga, amarfanha, mastiga, engole. Despe o robe de seda púrpura e veste o pijama com o cheiro a vésperas. Algodão impregnado de monotonia. Os livros fazem fazer coisas. Divórcios, poemas. O amor também."


Sandro William Junqueira 

domingo, 25 de março de 2018

Pintadas de fresco...




Deve ser tão alta que não coube toda na fotografia. Ou então, quem lhe vê só metade do corpo, poderá interrogar-se se "diz a bota com a perdigota...Ou então foi culpa do fotógrafo que, perante tanta beleza, nervoso, tremeliquento, desenquadrou a imagem.
Sentada ao sol, de mãos de não fazer nada cruzadas como lhe ensinaram, seca as unhas rubras, pintadas de fresco.

E as pernas? Desnudadas, decerto aveludadas, bem torneadas, numa junção elegante e hereditária, até ao limite de uma decência que aceita joelhos à mostra, parecem colunas geminadas de um qualquer templo grego. ...




M. Hercília Agarez
Vila Real, 25 de Março 

Eternamente Douro-374


Foto: josé alfredo almeida

Eternamente Douro-373

Foto:josé alfreddo almeida

Moldura de luz

Foto:josé alfredo almeida


ampla a vereda onde o sol adormece. 
para ser febre nas tuas pálpebras


Isabel Mendes Ferreira     

sábado, 24 de março de 2018

Instruída




                                               Para onde olhas, menina,
                                               com esse ar de granfina?
                                               O livro é para disfarçar?
                                               Esperas encontro discreto
                                               com namoro ainda secreto
                                               no meio familiar?

                                               Escolheste obra francesa
                                               com vaidade de burguesa
                                               devidamente instruída.
                                               O tema dá que falar,
                                               mas não deve entusiasmar
                                               quem de tudo tem na vida...



M. Hercília Agarez

Eternamente Douro-372

Foto: josé alfredo almeida 

Eternamente Douro-371

Foto:josé alfredo almeida

sexta-feira, 23 de março de 2018

Estive sempre sentado nesta pedra





Estive sempre sentado nesta pedra
escutando, por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago cair um fiozinho de água.
O lago é o tanque daquela idade
em que não tinha o coração
magoado. (Porque o amor, perdoa dizê-lo,
dói tanto! Todo o amor. Até o nosso,
tão feito de privação.) Estou onde
sempre estive: à beira de ser água
Envelhecendo no rumor da bica
por onde corre apenas o silêncio.



Eugénio de Andrade

Árvores

Foto: josé alfredo almeida


Apenas vós,
Árvores de tronco branco,
Me garantis que retornei.


Paulo Franchetti

Eternamente Douro-370

Foto:josé alfredo almeida

segunda-feira, 19 de março de 2018

Às carrachilas





Se vives sem ser pai, morrerás sem ter sido homem.
Provérbio russo
    

Um jovem pai passeia às cavalitas a sua filhotinha, jóia sem preço, talvez o primeiro fruto de noites de amor.
Quando bebé, sentiu-lhe o calor tenro no seu colo, acudindo a seus choros de berço, embalando-a em movimentos lentos e ritmados, amparando-lhe a moleirinha com jeito intuitivo e sem tremura de mão.Esperou que a menina andasse para a levar a passear em espaços de ares benfazejos.
Num impulso bem intencionado, pô-la sobre as costas. Nunca sentira essa simples aventura infantil enquanto filho, essa comunhão corporal de debilidade e rijeza. Chegou a hora da desforra. Braços-amarras, mãos-tenazes, segurança.
A criança parece assustada em tais alturas. Agarra-se ao pai com toda a força das mãozinhas. E o seu rosto desfeia-se de aflição. Tão pequenina, tão menina, ainda se não iniciou em escaladas. Ainda não experimentou o prazer de subir aos galhos robustos das árvores, pousos de passarinhos. Em ovo ou em descanso de voo.
Regressados a casa, o pai desencavalitou a filha perante o remoque da mulher ao ver o lindo vestido de sair todo amarrotado. Engoliu a réplica, resignado. Nenhum raspanete conseguiria beliscar o prazer daquele passeio a dois.




M. Hercília Agarez
Vila Real, 19 de Março

Paisagem de primavera

Foto:josé alfredo almeida

Eternamente Douro-367

Foto:josé alfredo almeida

Pequeno-almoço

Foto: josé alfreddo almeida