sábado, 19 de agosto de 2017

Barco na paisagem-343




As silhuetas dos barcos rabelos estacionados nas margens do Douro junto à Régua, a Vila Nova de Gaia ou ao Porto parecem hoje vultos condenados a servir de adorno aos bilhetes-postais com que as empresas do vinho do Porto pretendem preservar a memória de um tempo que já não existe. Há mais de meio século que essas silhuetas traçadas pela vela quadrangular e o enorme leme que, por se parecer a um longo rabo, lhes deu o nome deixaram de ser úteis na faina fluvial. O caminho-de-ferro retirou-lhes protagonismo e o macadame que permitiu o trânsito dos camiões cisterna carregados de vinho do Douro para as caves ditou-lhes a sorte. Mais tarde, as barragens confirmaram-lhes o destino.
Os barcos rabelos estão hoje condenados ao simbolismo de um vale, de um rio e de duas cidades junto ao mar que há mais de 400 anos devotam o essencial da sua existência à produção e exportação do vinho. Por isso, em tempo de vindimas, neste ano de efeméride — a última navegação de rabelos aconteceu em 1964, há 50 anos, portanto, embora haja quem note que terá sido em 1965 —, vale a pena retomar a Memória do rio (título de uma obra referencial dos historiadores Gaspar Martins Pereira e Amândio Morais Barros) e verificar como, ainda hoje, a saga dos rabelos persiste na cultura do Douro.
Não se sabe exactamente qual é a origem dos rabelos. Terão com ancestrais os navios dos viquinges, teriam sido uma herança dos suevos, não há consenso. Pouco se sabe também sobre o momento em que adquiriram a sua configuração moderna. Há pelo menos oito séculos que o Douro regista viagens de barcos transportando vinhos desde Cima Douro ou de Riba Douro, mas nos primórdios esses barcos pouco teriam a ver com os rabelos modernos. Documentos que resistiram à devastação dos cartórios dos mosteiros de Salzedas e de São João de Tarouca, no século XIX, dão-nos conta da existência de barcas cujo trânsito até ao Porto estava isento de portagens, mas talvez fossem barcas de pequena dimensão, ainda longe dessa criação gerada pela experiência e pela necessidade de escoar volumes crescentes do Douro para a barra do Porto.
No século de ouro da Expansão portuguesa, circulavam já entre a foz e a zona de Lamego embarcações capazes de carregar 30 pipas de vinho. A procura aumentava, fosse a das “Armadas d’el Rei”, fosse a da corte espanhola, onde segundo uma memória de 1532 se bebia vinho duriense, e era necessário reforçar a frota e a capacidade dos navios que estabeleciam a ligação entre a zona produtora e a barra de exportação. Um século mais tarde, essas embarcações, designadas por “azurrachas”, podiam já carregar 50 pipas de vinho e pesar 30 toneladas. Pode muito bem ser por esta época, que antecede a explosão da procura inglesa nas vésperas da Demarcação do Douro e a criação da Companhia Pombalina, em 1756, que a fisionomia actual do rabelo se tivesse consolidado.
Na aparência, os rabelos parecem seres desengonçados e frágeis, mas a análise da sua anatomia mostra uma construção complexa e exigente. Descer o Douro na Primavera, quando havia caudal para navegar, com dezenas de milhar de litros de vinho, exigia a resistência e flexibilidade que hoje se exige aos barcos que resistem ao rafting. Subi-lo depois das descargas exigia dor e um esforço tremendo, porque sempre que o vento ou a força dos remos não bastava para vencer a corrente tornava-se necessário puxar os barcos “à sirga”, ou seja, arrastá-los rio acima com cordas puxadas da margem por homens ou por juntas de bois. Não era um barco para flutuar em águas calmas; o rabelo era, para a época, uma máquina sofisticada cuja condução exigia coragem, destreza, e um conhecimento íntimo das correntes e das rochas que se espalhavam pelo curso de um rio “de mau navegar”, como recordavam as memórias antigas.
Sobre um saveiro em quilha, o casco propriamente dito, sobrepunha-se uma série de traves de reforço chamadas cavernas. Nas duas amuradas, duas tábuas, os bordados, criavam uma espécie de balaustrada de protecção. Na parte frontal, uma pequena cobertura criava a carlinga, onde se localizava uma pia. O arrais, piloto e comandante do barco, instalava-se em cima de um pequeno palco, as apegadas, de onde manobrava a espadela, o enorme leme preso na parte anterior a um “parafuso” instalado numa “chumaceira”. O mastro, reforçado com uma tábua na perpendicular que unia os dois bojos da embarcação, erguia-se na parte anterior, suspendendo a verga de onde pendia a vela. Havia ainda uma cozinha, onde se acendia lume. Tudo para acondicionar da melhor forma possível uma tripulação de marinheiros (uma designação tolerada porque chegavam ao mar) que incluía, para lá do arrais, um feitor da proa, o feitor da espadela, um moço que cozinhava, quatro cabresteiros que ajudavam a manejar com cabrestos a pesada espadela, um vinhateiro que zelava pelas pipas e três ponteadores que ajudavam a definir a trajectória do barco com o recurso a pás.
Na sua era de glória, nos séculos XVIII e XIX, chegou a haver 2500 rabelos a cruzar o Douro. Em 1941 ainda estavam registadas 231 embarcações. Entre as diferentes eras da vida prática destes barcos alimentou-se e transmitiu-se um saber sobre os humores do rio que jamais descurou o perigo do naufrágio e da morte. Não há registo detalhado do número de vítimas desta epopeia que exigia uma viagem de três dias para descer o rio e, no mínimo, uma semana para vencer um desnível de 40 metros até Barqueiros (125 entre a foz e Barca de Alva) no regresso ao Alto Douro. A existência de lugares com o nome de “Malvedos” (nome de uma quinta emblemática da Grahams’s, junto ao Tua) do “Roncão”, na zona da actual quinta da Romaneira, de “Diabude” ou “Olho de Cabra” atestam o relato de lugares malditos, cuja travessia exigia cuidado, saber e a ajuda da Providência. A existência de pequenas capelas votivas, como a de Nossa Senhora de Cardia, espalhadas ao longo do rio dá-nos conta desse medo e dessa necessidade de protecção. Todos os anos as margens do Douro acolhiam destroços dos rabelos naufragados, aos quais as populações ribeirinhas chamavam simplesmente “mortos”.
Na primeira fase da sua implantação no rio, as barcas que ligavam o interior ao mar, fazendo do Porto o pólo terminal da vida agrícola do Douro, os principais pontos da navegação seriam o Tua, o Pinhão, a Régua e Barqueiros. Dali saíam não apenas vinhos, mas também o sumagre e as frutas de espinho (limões e laranjas). Do Tua para cima, o actual Douro Superior, era um outro mundo, voltado para Castela ou para as Beiras. Um enorme rochedo, o cachão da Valeira, tornava impraticável a navegação acima da foz do Tua. Só depois de 1792 se rebentou o cachão (um rochedo de grandes dimensões) que obstruía a passagem e a viagem pôde prosseguir, permitindo que a mancha da vinha que acelerava desde o final de Seiscentos chegasse finalmente a essa última fronteira da região demarcada. Hoje, uma inscrição coeva, visível acima das águas da albufeira da Valeira, num dos mais empolgantes troços do Douro, invoca essa façanha da vontade humana e da engenharia.
Nem por isso a Valeira deixou de ser um ponto no qual a força do Douro, que no seu leito de cheia se compara em caudal aos gigantescos Dniepre ou o Volga, mostra uma particular crueldade. A morte nesse local tornou-se recorrente e nem a capela de São Salvador do Mundo, no alto de uma das montanhas que cerca o vale, obstou a essa força selvagem. Foi aí que, em 12 de Maio de 1861, morreu o Barão de Forrester — no barco seguiam também Gertrudes, a celebrada cozinheira do Águia d’Ouro cuja morte Camilo Castelo Branco tanto lamentou, e Dona Antónia, que se salvaria. Numa terra na qual a dureza do clima, do solo e do trabalho sempre propiciou explicações sobrenaturais para as coisas do mundo, a morte do barão, o homem que passou meia vida a sulcar as águas do Douro para lhe dedicar os mais belos mapas que alguma vez a cartografia sobre a região produziu, só podia servir de mau presságio. No final do século, esse medo é ainda retratado nas novelas do escritor Campos Monteiro, de Moncorvo. A viagem do Pocinho para a Régua era encarada como uma prova que tinha o Juízo Final como limite.
Manuel Carvalho in jornal Público

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