quarta-feira, 31 de maio de 2017

Eternamente Douro-50

Foto:josé alfredo almeida

Extra Programa

Foto: sombras de alguém


Já não pode uma criança
acalentar a esperança      
de gozar folga da escola.
Falaram-me em passeio
em belo carro burguês
quando ia para a cama.
Os sonhos? Só aventuras
velocidades, loucuras
e a estrada sempre a correr.

No banho não refilei,
dos botins não me queixei
(só reclamaram os pés...)
Bem vestido e penteado
como convém a morgado
bem nascido e bem criado.
Lá fui para o meu lugar
muito bem refastelado,
apreciando a paisagem.
Mas...quando menos se esperava
fez das suas um dos pneus.
Tiraram homens casacos,
dispensaram os chapéus
e mesmo sem nenhum jeito
trocaram roda furada.
E eu? Ia lá ficar
como paspalho a olhar
trabalho de gente adulta?
Fiz como diz minha avó
em provérbios diplomada:

"O trabalho do menino é pouco, mas quem o despreza é louco".

M.Hercília  Agarez

Pontes da Régua-1030

Foto:josé alfredo almeida

terça-feira, 30 de maio de 2017

Hei-de trazer-te aqui


Hei-de trazer-te aqui para te mostrar 
os pequenos barcos brancos 
que levam o Verão desenhado nas velas 
e trazem no bojo a alegria dos arquipélagos 
onde se ama sem azedume nem pressa. 
Aqui, temos a ilusão breve 
de que os dias sabem a pólen 
e esvoaçam nas asas das abelhas 
como cartas eternamente sem resposta. 


José Jorge Letria

Barco na paisagem-285

Foto:josé alfredo almeida

Pontes da Régua-1029

Foto:josé alfredo almeida

domingo, 28 de maio de 2017

Poeta

20 anos de artes visuais(ESJAC)- foto de Vitor Santos

"A minha primeira poesia ficou inédita. Levoa-a a minha mãe para a cova. Deita-lha em Canelas, teria eu cinco anos. Inspirou-ma um capão de vides acesso na pedra do nosso lar."


Testemunhos de João de Araújo Correia, in Perfil Literário de João de Araújo Correia de Cruz Malpique




"Eu estava na minha aldeia a convalescer de doença longa. Tinha interrompido os estudos e e entrertinha-me a ver passar os dias. Às vezes, dava o meu passeio através das matas, imaginando que o ar dos pinheiros me fazia bem. E que bem me fazia! Regressava a casa com mais força e mais contentamento. Não era raro tilintar-me no bolso, como contrapesso, o meu sonetito, perpretado ao longo de silenciosos carreiros."


João de Araújo Correia in Três Meses de Inferno

Pontes da Régua-1026

Foto:josé alfredo almeida

Barco na paisagem-284

Foto:josé alfredo almeida

sábado, 27 de maio de 2017

Traquinice






Nada foi premeditado.
Naquela manhã primaveril, ao contrário dos outros dias, embora ainda fosse cedo, não encontrei nenhuma menina da minha escola pelo caminho, como era costume.

Antes de virar a esquina para o Largo dos Aviadores, entrei na padaria e comprei um pão de leite com açucar.
Quando entrei na Alameda e passei pelo parque infantil,
reparei que estava vazio,
sentei-me num banco, o coração a bater as mãos suadas.
Uma ideia surgiu-me, um sonho uma fantasia talvez.
De faltar à escola e ter inteiro só para mim, o parque infantil.
Por momentos a Alameda pareceu-me adormecida, um sol morno tocou-me doce no rosto, não havia por perto ninguém que pudesse testemunhar a minha falta.

Poisei com muito cuidado a minha mala escolar, cor de rosa com dois cisnes brancos a nadarem num lago maravilhosamente azul, escolhida por mim, numa das livrarias da rua dos Camilos.

No início, nem sabia por onde havia de começar.
Pelos cavalinhos, pensei, dando balanço com um pé, depois as balanças, o escorrega e por fim, nem queria acreditar, os baloiços.
Dois baloiços só para mim.

E foi aí que fiquei.
A andar de baloiço toda a manhã. Voei como um pássaro,
respirei todos os odores florais, senti-me no céu.

Só quando ouvi ao longe barulho, rumores de riso de crianças, é que me apercebi que era a hora do almoço.

Apressei-me a ir para casa, um frio na barriga e uma sensação de mal-estar.
Um segredo que guardei durante algum tempo.

Não foi premeditado.
No entanto, sei que me doeu mentir.

Também sei, que me ficou daí esta estranha mania de querer tocar com a ponta dos pés em tudo que é mágico e me faz sonhar.


Ana de Melo

Barco na paisagem-283

Foto:josé alfredo almeida

Pontes da Régua-1025

Foto:josé alfredo almeida

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Bela Régua

Foto: Olhar D`Ouro-photografy


Peso da Régua,


sente-se ao respirar.
Peso da Régua,
Nem sempre um rio precisa de mar.


Amanhã talvez, percebam teu tesouro:
Uma varanda aberta ao céu, erguida sob o Douro


Peso da Régua,
Tão leve é te sentir.


Peso da Régua,
És Rio de Janeiro, do Douro Vinhateiro.



Serenamente

Foto:josé alfredo almeida





"Detras de todo esto se oculta 
una gran felicidad"



Yehuda Amijai

Pontes da Régua-1024

Foto:josé alfredo almeida

O que nos resta





"Sabemos naturalmente que tudo o que nos rodeia é mutável e efémero.
Crescemos a ver coisas aparecerem e desaparecerem.
Sabemos que mais cedo ou mais tarde algo mais importante na nossa vida também nos vai abandonar.
O que não sabemos é o quanto nos vai perturbar.
O que não sabemos é o quanto nos vai marcar.
O que não sabemos é que vamos, consciente ou inconscientemente, tentar recompor as nossas emoções.
O que não sabemos é que um dia vamos redescobrir o mundo que perdemos.
O que não sabemos é o quanto nos vai doer revisitar as memórias e assumir que o que mudou não volta a ser.
Os lugares despem-se de sentido, ficam frios e vazios.
Permanecem, mas em silêncio. Permanecem, mas sem emoção.
A certo ponto, até as memórias se transformam.
A certo ponto, até as memórias se desvanecem.
É aí que a fotografia se assume.
E é ela tudo o que nos resta." 



Jorge Marques

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Pontes da Régua-1022

Foto:josé almeida almeida

Foi com todo o prazer que vi estas suas últimas fotografias, até porque, as das pontes, me fazem vir ao de cima imperecíveis lembranças dos meus tempos de rapazinho. E veja se não há razão para isso. Realmente, tenho em mente - não sei se com acerto ou não, porque as certezas dos tempos de menino são sempre relativas - que a ponte em revisão, a de ferro, era , por volta dos anos de 1933 e 1934, concessionada ao Banco Borges & Irmão, sendo a administração dela exercida pelo meu avô, Gaspar Monteiro, e pelo meu padrinho, José Pereira Bastos. Acontecia, então, com uma regularidade anual, que, nos dias das festas dos Remédios, em Lamego, o trânsito nesta ponte era enorme, constituindo mesmo um espectáculo cheio de interesse, com os romeiros a passarem a "pedibus calcantibus" pelo tabuleiro da ponte, onde cada um pagava um misérrimo meio-tostão, sendo-lhes passado num pequenino bocado de cartão o competente recibo do pagamento feito, que teriam de guardar, para lhes dar direito à passagem de regresso. Toda esta gente, aos milhares, se ia acumulando no largo da Ponte, onde, em descanso, ia aguardando o abrandamento do calor, que em Setembro, ainda é muito. Abrandado o calor, em grossos cordões iam todos os romeiros esvaziando o largo, rapando o meio-tostão do bolso, acarretando os cestos com comida e os muitos garrafões com a bebida da região. Alegremente, iam cantando e dançando, levando com elas muitas crianças, provocando um imenso alarido. O meu avô, nessas alturas, organizava um farto jantar numa das casas que havia à entrada da ponte, onde todos gostávamos de ver aquelas pessoas, cheias de alegria, a  caminho das importantes festas de Lamego. A confusão que reinava na zona era imensa, até porque, aos que iam a pé, se juntavam muitos carros de carreira, que vinham de várias  partes do norte, que manobravam dificilmente entre os milhares de pessoas que se acumulavam indisciplinadamente na via pública. Enfim, um acontecimento extremamente curioso, que relembro ainda com muita intensidade, e que, sendo um espectáculo ajustado àquele tempo, passado quase um século, seria, absolutamente e ainda, um apetecível espectáculo para as pessoas modernas das gerações desta era diferente.
Está a ver para onde as suas fotos me lavaram? Adivinha, certamente, o que elas para mim representam: a minha satisfação por as ter recebido é grande e compreensível, porque fazem lembrar coisas de um passado já bem distante.
E, assim, lhe deixo mais um apontamento da Régua, cuja história me parece ser de recordar às gentes de hoje.
Um abraço,

28-12-2011
Abeilard  Henriques Vilela

Onde era a minha escola primária

Foto: Tertúlia João de Araújo Correia


"Ausente desde menino, venho morar na mesma rua onde me criei e onde era a minha escola primária. Da janela do meu quarto, ao erguer-me, descubro o mais gracioso e majestoso panorama que eu ainda gozei, aos anos que conto e ao que tenho visto, com magras posses, no meu país encantado. Linda vista!
(...)
A Régua! Está a mesma, como eu a deixei - onde vai isto! - há que mundos, numa tarde de Outubro, estavam as vinhas a tingir-se de um arroxeado de morte...
Eu ia para o colégio...Volto diverso e a vila é irmã da que ficou. As mesmas casas, as mesmas ruas. Só uma diferença, noto, nesta íngreme via de Medreiros, a mesma onde me criei e onde era a minha escola primária. Onde estará o meu mestre, o Sr. Zezinho, que todos os dias cortava um vergueiro no quintal - só com um vergueiro, dizia - para desorelhar os rapazes?"


João de Araújo Correia im Sem Método, nota I

Tons de azul

Foto:josé alfredo almeida



Branco instante
entre verde e azul:
garça ou pensamento.




Yeda Prates Bernis

terça-feira, 23 de maio de 2017

Eu e tu

Desenho de Ana Margarida Almeida


"Vou falar-te das minhas manhãs quando me levanto. Um peso no corpo, uma morte no olhar, corredor estreito por onde os passos avançam em direcção ao copo onde dissolvo a vitamina C em água. Logo o cigarro, a primeira baforada, como se uma esperança, embora uma esperança de nada. Seguir para o banho, copo e cigarro, o espelho em frente, cercado por azulejos brancos macabros. O resto já sabes, não preciso dizê-lo. Somos assim dois, eu e tu.
Guarda segredo."



Jorge Roque

Pontes da Régua-1021

Foto:josé alfredo almeida

Tunas do Marão




Tunas  do Marão

Autor: José Alberto Sardinha
Ediror. TRADISON-Editora Discográfica, Ldaª



"Desde o momento em que resolvemos dedicar um estudo circunscrito às tumas do Marão, definimos como território a pesquisar os aros concelhios de Amarante, Vila Real, Mesão Frio, Baião, Peso da Régua (Tuna de Vinhós), Santa Marta de Penaguião (Tuna de Carvalhais e a Tuna de Soutelo) e também um pouco de Mondim de Basto...
(...)
"É seguro que muitas tunas outra existentes na região não estejam mencionadas, mas tal omissão deverá ser relevada por ser impossível obtermos referências de todas elas, atendendo à surprendente quantidade de tunas que proliferavam por toda esta corda de povos em redor do Marão. Como nos disse a este respeito um dos informadores que entrevistámos, numa expressão sintética: "Em primeiro (antigamente), aqui (nesta região), onde quer (em todas as povoações) havia uma tuna."


José Alberto Sardinha

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Aula da mestra régia





As escolas de primeiras letras...Cerro as pálpebras e vejo-me, aos quatro ou cinco anos, na aula da mestra régia de Canelas. A minha irmã mais velha levava-me à lição para eu não brincar com a canalha da rua. Ia todo contente, porque não apanhava bolas, não tinha ABC nem cartilha – passava as horas entretido com um regrão a desenhar macacos numa loisa.Dava-me muito mimo a Senhora Mestra e as meninas grandes. Recordo-me da Laurinha, que era muito branca e tinha na face uma cicatriz riangular, pequenina, junto da coomissuras dos lábios frescos.Beijava-me. A cicatriz esvoaçava como um insecto doido no clarão dos seus olhos castanhos.
Não se abria a janela da escola nas manhãs cálidas. O sol alegrava o traço da porta.Avançava, marcando os minutos no sobrado escuro.Os raios que desciam da telha vã projectavam-se na cabeça guedelhuda das raparigas da aldeia ou sujavam o chão com nódoas de luz, moedas de oiro reluzente que eu chocalhava na palma da minha mão. Não havia carteiras. As alunas ricas sentavam-se em cadeirinhas de pau ou de palhinha. As pobres alastravam-se no chão, quando muito em bancos de pinhoo, lustrosos de atrito das saias de riscado. A própria senhora profesora amesendava-se num esteirão. Sobre o regaço, poisava-lhe numsa pasta de veludo, obra asseada, onde quero enxergar ainda umas flores amarelas. Esta pasta e a menina-de-cinco-olhos eram o ceptro e manto da realeza absoluta da Senhora Mestra.
Era feia. Picada de bexigas, olho sarcástico, mãos finas, tinha pieira no peito agasalhado de xales...Aninhada, nem galinha choca a ensinar pintainhos...
-Anda cá tu, minha cara-de-ovelha...
Tinha jeito, para pôr alcunhas. Mero ouvinte do seu colégio, só eu me posso gabar de não ter sido crismado pelo seu satírico engenho. Dava-me muito mimo. Fico a adorar-me, quando me descobriu a precoce habilidade, que perdi, de caricaturar na pedra com giz fácil, tanto a Cara-de-Ovelha, como outros carões da sua embirra. O meu génio completava o seu.
(...)
Ó alma da minha mestra régia! É meio-dia na quadra onde davas lição, mestra velha, sentada na tua esteira, com a pasta de flores amarelas no regaço.
É meio-dia. Vamo-nos embora. Deite-nos a sua bênção!
Meio-dia. Desgraçadas escolas, onde é sempre meia-noite...



 JOÃO DE ARAÚJO CORREIA,  in "Sem Método", nota LXVI.

Pontes da Régua-1020

Foto:josé alfredo almeida

Barco na paisagem-281

Foto:josé alfredo almeida

domingo, 21 de maio de 2017

Vibrações





Quando, daqui a umas horas, a manhã vier branca e fria, saberei eu andar ?
Lembrar-me-ei de como se põe um pé à frente do outro?
Sem cair....



Al Berto

Escrever a vida



"A vida... e a gente põe-se a pensar em quantas maravilhosas teorias os filósofos arquitectaram na severidade das bibliotecas, em quantos belos poemas os poetas rimaram na pobreza das mansardas, ou em quantos fechados dogmas os teólogos não entenderam na solidão das celas. Nisto, ou então na conta do sapateiro, na degradação moral do século, ou na triste pequenez de tudo, a começar por nós. 
Mas a vida é uma coisa imensa, que não cabe numa teoria, num poema, num dogma, nem mesmo no desespero inteiro dum homem. 
A vida é o que eu estou a ver: uma manhã majestosa e nua sobre estes montes cobertos de neve e de sol, uma manta de panasco onde uma ovelha acabou de parir um cordeiro, e duas crianças — um rapaz e uma rapariga — silenciosas, pasmadas, a olhar o milagre ainda a fumegar. "

Miguel Torga, in "Diário (1941)

Pontes da Régua-1019

Foto:josé alfredo almeida

sábado, 20 de maio de 2017

Tristeza





Quem é esta mulher, 
 a sempre triste,
 que vive no meu coração? 
 Quis conquistá-la mas não consegui. 

 Adornei-a com grinaldas
 e cantei em seu louvor
 Por um momento
 bailou o sorriso no seu rosto, 
 mas logo se desvaneceu.

 E disse-me cheia de pena: 
 — A minha alegria não está em ti.

 Comprei-lhe argolas preciosas, 
 abanei-a
 com leques recamados de diamantes, 
 deitei-a em cama de oiro 
 Bateu as pálpebras 
 como um relâmpago de alegria
 que logo se apagou.

 E disse-me cheia de pena:
 — Não está nessas coisas a minha alegria. 

 Sentei-a num carro de triunfo, 
 e passeei-a por toda a terra. 
 Milhares de corações conquistados
 caíram humildes a seus pés, 
 e as aclamações reboaram pelo céu 
Durante um momento
 brilhou o orgulho nos seus olhos, 
 mas logo se desfez em lágrimas.

 E disse cheia de pena:
 — Não está na vitória a minha alegria 

 Perguntei-lhe:
 — Que queres então? 
 Respondeu-me:
 — Espero alguém 
 que não sei como se chama. 
 Depois calou-se.

 E passa os dias a dizer cheia de pena:
 — Quando virá o amado desconhecido?
 Quando o conhecerei para sempre? 



 Rabindranath Tagore 

Pontes da Régua-1018

Foto:josé alfredo almeida

Barco na paisagem-280

Foto: josé alfredo almeida

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Eternamente Douro-49

Foto:josé alfredo almeida


Dura a vida alguns instantes
porém mais do que bastantes
quando cada instante é sempre.


Chico Buarque

Pontes da Régua-1016

Foto: josé alfredo almeida

Em casa

Foto:josé alfredo almeida



Quem disse que eu me mudei?
Não importa que a tenham demolido:
A gente continua morando na velha casa em que nasceu.


Mario Quintana

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Ilusão

Foto:josé alfredo almeida




de ilusão em ilusão
até a desilusão
é um passo sem solução
um abraço

um abismo
um
soluço
adeus a tudo o que é bom

quem parece são não é
e os que não parecem são.


Paulo Leminski

Azulejos

Fotos: josé alfredo almeido

Lembras-te?






"Quando acordares lembra-te de mim. Eu sou aquele que te pegou na mão, e o que te acariciou os cabelos. Estavas cheio de medo e o sono não conseguia arrastar-te para dentro de ti, nem o tempo para dentro de tua mais íntima idade. Precisavas de alguém que te amparasse a cabeça e te falasse em voz alta. Tantas vozes, lembras-te? Tanto silêncio, lembras-te? Eu estava lá e só eu te ouvia."



Manuel António Pina

segunda-feira, 15 de maio de 2017

A espera

Foto: josé alfredo almeida

"Antes de saíres olhaste para este relógio e disseste que voltavas ao início da noite. Eu não te perguntei a que horas voltavas. Disseste que voltavas às nove. Eu estava a ler, sabia que ias sair, esperava que fosses sair e não olhei para o relógio. Tínhamos acordado às duas da tarde. Tínhamos comido. Eram três horas da tarde. Olhei-te quando aproximaste o teu rosto, os teus lábios para nos beijarmos. Não te olhei quando saíste mas, agora, consigo imaginar a porta depois de a teres fechado, os teus passos a desaparecerem nos degraus da escada e, depois, o silêncio sem ti. Consigo até imaginar-te na rua. As tuas mãos sobre a mala que compraste, os teus passos. Talvez te tenha imaginado durante alguns instantes depois de saíres.  No entanto, se o fiz, essas imagens misturam-se com aquilo que lia e com a certeza de saíres e de ter de aprender a estar sem ti algumas horas. Demorei meia hora até olhar para o relógio, este relógio, o mesmo para onde olhaste antes de saíres quando disseste que voltavas às nove. Tinha passado meia hora e, por isso, continuei a ler. Tentei não pensar que faltava mais de dez vezes o tamanho daquele tempo que passei sem ti até te ver de novo. Continuei a ler, mas tu estavas no fim de cada parágrafo, escondida entre as frases, no momento de virar uma página. Tentei não olhar para o relógio. Olhei para o relógio eram cinco horas, eram seis e meia, eram sete e meia. Às oito horas, pousei o livro e comecei a esperar-te. Fiquei sentado neste sofá, nesta sala, a esperar-te. São onze horas. Agora, sou eu que me vou embora. Quando regressares, se regressares, não me irás encontrar. Nunca mais. Não me encontrarás nem a mim, nem a este bilhete de despedida que pensei deixar-te, mas que vou rasgar já em seguida."


José Luís Peixoto 

Pontes da Régua-1014

Foto:josé alfredo almeida