segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Outra vez (e sempre) Doutor Camilo






Escrever sobre Camilo de Araújo Correia é como percorrer caminhos amados, partilhar alegrias saudosas, refazer ausências que nunca deixam de ser uma festa da vida e à vida.
Nunca me atreveria a olhá-lo do parapeito literário. Certamente outros que voam mais alto o farão com justeza e mestria. Revelarei pouco do muito que a sua proximidade me deu. Curto foi o convívio, mas intenso e profundo, sempre servido com doçura, lealdade e elegância. Curvo-me à sua memória, tentando sempre invocar palavras singelas mas sentidas. Distinguia-se pela serenidade, fina ironia, determinação e firmeza. Nestes atributos, sem vaidades nem soberba, residia a sua força e a sua diferença.
Entre nós existia o respeito do tempo, as diferenças dos tempos. Cultivamos essa relação abraçando tudo o que tínhamos em comum, como tesouros da natureza.
Douro e Coimbra, dois amores eternos vividos intensamente, partilhados na combinação certa. A estada e a partida por entre os recortes das suas capas protetoras foram caminhos muito iguais em épocas algo diferentes.
Acreditando sempre que santos da casa podem fazer milagres, sem medos, sem tristezas, regressamos para o nosso altar.
O destino e a proximidade física e afetiva com a família Araújo Correia fizeram de mim seu médico de cabeceira, termo por nós muito querido. Cada visita transformava-se numa viagem pelos assuntos que a agudeza do seu espírito impunha. A alegria jorrava em abundância enquanto, sem sair do sítio, pedalava até ao Moledo ou, raras vezes em momentos menos bons, se sentava à espera de boleia para Canelas. Fugaz o nosso conhecimento, breve também por assim o sabermos, foi em suma sempre uma festa à vida.
“Zé Alberto foi a Coimbra? O que se passa com o “Tio Luís” (nome carinhoso dado ao Hospital da Régua por todos os que nele trabalham ou trabalharam)? E em Lamego, como está isto? como está aquilo?”… Esperava sempre os meus relatos, as minhas histórias, como boias que o mantinham agarrado a tudo o que amou na vida.
No dia do seu aniversário presenteei-o com um perfil de carril. Agradado com a lembrança, logo pusemos os pés no estribo da carruagem para iniciarmos a viagem pela nossa querida Régua, onde jaz o caminho de ferro e, entre risos, curvas e vinhedos, continuamos até Lamego. De seguida fomos ao Porto, cidade dos banhos de cultura e dos banhos de mar na sua “Lecinha”, praia onde desfrutava de um rochedo como cadeira anatómica para repouso, sempre banhado pela maresia e pelo sol e distinguido com a inspiração de António Nobre e Siza Vieira. Coimbra foi a próxima paragem. Apresentei-lhe o “Montanha” de hoje, explicando-lhe a razão do seu novo nome “Mandarim”, lá tomamos os cafés todos do mundo sem esperarmos pelo Vale do Correio da “Carmito”; conheceu o Tatonas, o Tatonão, o Kiki, o Maló; abraçamos o “Texera”; paramos no “Penico”; subimos da baixa até à alta como penas; cumprimentamos lentes; fomos outra vez repúblicos; comemos com o Sr. Bedel; vestimos a camisola da Briosa; procuramos o Sargento; dissemos adeus ao Caganeta; surpreendemos o Dim Dim a fazer bolinhas; vimos passar as Gazelas; ouvimos o relinchar do Pedrinho; olhamos a cabra; sentamo-nos nas escadas da Sé Velha, indo de seguida para o parque estender na relva os corpos moídos. Por fim pusemos a capa, para em silêncio agradecer o trinar das cordas e abençoar as vozes, no adeus da despedida.

Fecho os olhos, revejo-o a oferecer a simpatia no olhar e o carinho nas palavras e atitudes.
Bem haja, Doutor Camilo, por ter permitido que a sorte me bafejasse ao colocá-lo no meu caminho.

José Alberto Soares Marques

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