quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Aquele cálice de vinho fino






“Não vos acomodeis a este mundo”
                                                                                               S. Paulo, Epístola aos Romanos,12.2 


Tive a sorte de conhecer Camilo de Araújo de Correia e de me relacionar com ele muitos anos. E dos encontros que a vida nos proporcionou ficou uma amizade e uma enorme admiração  minha pelo cidadão que amou a Régua e o Douro e se entregou a causas sociais, nomeadamente à da acção humanitária dos bombeiros. Recordo o conceituado médico e o autor de Historias na Palma da Mão, que herdou o génio literário do seu pai, João de Araújo Correia.
Quero lembrar os meus encontros com Camilo de Araújo Correia. Não tenho ideia quando se deu o primeiro, mas tenho presente tudo, ou quase, o aconteceu no último, a que voltarei.
 Era comum, amiúde, aos sábados de manhã, encontrar-me com Camilo de Araújo Correia no Café-Pastelaria Cilita, ali na Rotunda do Tondela, para dar dois dedos de conversa sobre os assuntos mais variados, que iam desde a paixão pelo futebol e pelo cores do F. C. do Porto, às  coisas  mais comezinhas da terra, quase sempre  em volta do que estava mal  feito e, quando se proporcionava,  era bom ouvir-lhe  uma piada fina e elegante que  me  fazia  sorrir todo o dia.
No tempo em que fui vereador da Câmara Municipal da Régua encontrei-me mais vezes com Camilo de Araújo Correia em acontecimentos de natureza cultural e artística, como na apresentação de novos livros, uma ou outra exposição de pintura e de fotografia e concertos, onde gostava de estar presente e de aplaudir, sempre que lhe agradavam.
 Foi num desses eventos,  que ao tempo eram pouco frequentes na cultura reguense, baptizado de Serões de Leitura, promovidos pela dedicada Drª Maria Adelaide Fernandes, fundadora da extinta Associação Cultural do Alto Douro, que partilhei  com  ele  um momento muito especial . Pude deliciar-me a ouvi-lo  falar de outros  escritores como se deles fosse muito próximo ou mesmo familiar. Guardo na minha memórias aquelas maravilhosas noites em que ele foi o convidado a traçar o perfil humano e literário de dois gigantes literários da nossa"pátria pequena", o poeta João de Lemos e o romancista Guedes de Amorim.   
Por essa altura, eu era o presidente dos Bombeiros da Régua e confesso que sabia que Camilo de Araújo Correia tinha sido um dos meus ilustres antecessores nessas nobres funções do associativismo local. Claro que, para mim, este facto era um motivo de orgulho e obrigava-me a saber mais desta sua faceta cívica. Nas primeiras buscas aos arquivos reparei que no álbum do fotografias de1964 havia uma da tomada de posse do jovem médico Camilo de Araújo Correia, então acabado de regressar do serviço militar em Porto Amélia, e outras da sua apresentação ao Corpo de Bombeiros. Mas havia mais coisas no arquivo que estavam relacionadas com a sua acção, como era o jornal Vida Por Vida, nascido em Agosto de 1956. Se não foi o mentor da sua criação, foi o primeiro director deste histórico e já desaparecido órgão oficial dos Bombeiros da Régua, onde o maior colaborador era o seu pai, o escritor João de Araújo Correia, que nele  publicou as crónicas mais tarde editadas no inesquecível  livro  Pátria Pequena.
Devo dizer que Camilo de Araújo Correia esteve apenas um ano a servir activamente os Bombeiros da Régua, mas isso foi o tempo suficiente para os eleger como temas de crónicas no jornal O Arrais. Podia aqui citar abundantes exemplos, onde lhes exaltou o heroísmo e a generosidade, mas há uma delas que merece a minha solene evocação. Na sua crónica “De flor ao peito”, verdadeiro balanço breve de uma vida cheia, ele recorda com grande carinho e emoção quando os bombeiros foram esperá-lo a Coimbra com os seus carros vermelhos e reluzentes.  Com o seu humor, traduziu este seu sentimento de fraternidade, com um justo receio de que “tocasse a sirene”!
Procurei mais encontros com Camilo de Araújo Correia quando passei a convidá-lo para as cerimónias oficiais dos aniversários dos bombeiros. Convites declinados e justificados por uma progressiva debilidade física. Mas a sua conhecida gentileza, mantida até ao limite, não o inibia de lhes dar resposta escrita como passo a exemplificar:
” Exmos. senhores Presidente da Direcção e Comandante
 Agradeço muito penhorado o honroso convite para as festas comemorativas do 125º aniversário dos nossos Bombeiros. Infelizmente, não poderei cumprimentá-los por motivo de uma doença que nunca me pode garantir máximo de saúde para o dia seguinte e, muito menos, a uma curta distância.
Estou certo de que o cumprimento de tão aliciante programa será mais uma honrosa página na digníssima História dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua. Creiam na maior estima e simpatia.”

 Podia não me lembrar de mais nenhum encontro com Camilo de Araújo Correia, mas  não esqueço o último que me fará lembrá-lo em toda a minha vida. Aconteceu na sua Casa de Santo Isidro, quando a doença o minava, mas não o seu cintilante espírito e a sua boa disposição. Levou-me a procurá-lo um assunto relacionado com os bombeiros da Régua: a nossa intenção de editar um livro sobre história da nossa centenária associação e dos homens que nunca despiram a farda da generosidade e do altruísmo. Na longa e demorada conversa, passámos revista a todos eles, a esses anónimos heróis que, sempre a sorrir, me confessava que foram “sempre fiéis à sua Corporação, à sua terra, a si próprios!"
Por motivo que não preciso de revelar, Camilo de Araújo Correia não me podia ajudar a levar a cabo esta tarefa, mas entregou-me as suas crónicas dedicadas aos bombeiros que gostava de ver republicadas. Como sempre, não deixou de brincar, com um humor fino e benevolente, para dizer-me que nesse outro lado do nosso mundo de seres mortais não devia haver grandes fogos para os nossos bombeiros apagarem. Não deixei de lhe manifestar a minha inteira concordância com um sorriso largo, enquanto degustava um cálice de vinho fino que me ofereceu como um néctar raro e das melhores castas durienses.
Já passaram alguns anos desde que Camilo de Araújo Correia nos deixou, mas aquele cálice de vinho do fino… faz-me lembrar um homem bom, um médico e um escritor de raros talentos e, sobretudo,  faz-me acreditar que há pessoas que, como ele,  continuam a existir para lá da sua ausência física.


José Alfredo Almeida

2 comentários:

  1. ..Um belo texto..
    Simplicidade ..requinte..e uma ternura...
    intensa ,,!!

    GOSTEI MUITO...MUITO...!!!

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  2. Sensibilidade e cuidado... afetos e respeito pelo valor, pelo legado, pela pessoa...

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