“Não vos acomodeis a
este mundo”
S. Paulo, Epístola aos Romanos,12.2
Tive a sorte de conhecer Camilo
de Araújo de Correia e de me relacionar com ele muitos anos. E dos encontros
que a vida nos proporcionou ficou uma amizade e uma enorme admiração minha pelo cidadão que amou a Régua e o Douro e se entregou a causas sociais, nomeadamente
à da acção humanitária dos bombeiros. Recordo o conceituado médico e o autor de
Historias na Palma da Mão, que herdou
o génio literário do seu pai, João de Araújo Correia.
Quero lembrar os meus encontros
com Camilo de Araújo Correia. Não tenho ideia quando se deu o primeiro, mas
tenho presente tudo, ou quase, o aconteceu no último, a que voltarei.
Era comum, amiúde, aos sábados de manhã,
encontrar-me com Camilo de Araújo Correia no Café-Pastelaria Cilita, ali na Rotunda do Tondela, para
dar dois dedos de conversa sobre os assuntos mais variados, que iam desde a
paixão pelo futebol e pelo cores do F. C. do Porto, às coisas
mais comezinhas da terra, quase sempre
em volta do que estava mal feito e,
quando se proporcionava, era bom
ouvir-lhe uma piada fina e elegante que me fazia
sorrir todo o dia.
No tempo em que fui vereador da
Câmara Municipal da Régua encontrei-me mais vezes com Camilo de Araújo Correia
em acontecimentos de natureza cultural e artística, como na apresentação de novos
livros, uma ou outra exposição de pintura e de fotografia e concertos, onde
gostava de estar presente e de aplaudir, sempre que lhe agradavam.
Foi num desses eventos, que ao tempo eram pouco frequentes na cultura
reguense, baptizado de Serões de Leitura,
promovidos pela dedicada Drª Maria Adelaide Fernandes, fundadora da extinta
Associação Cultural do Alto Douro, que partilhei com
ele um momento muito especial . Pude
deliciar-me a ouvi-lo falar de
outros escritores como se deles fosse
muito próximo ou mesmo familiar. Guardo na minha memórias aquelas maravilhosas
noites em que ele foi o convidado a traçar o perfil humano e literário de dois gigantes
literários da nossa"pátria pequena", o poeta João de Lemos e o
romancista Guedes de Amorim.
Por essa altura, eu era o
presidente dos Bombeiros da Régua e confesso que sabia que Camilo de Araújo
Correia tinha sido um dos meus ilustres antecessores nessas nobres funções do
associativismo local. Claro que, para mim, este facto era um motivo de orgulho
e obrigava-me a saber mais desta sua faceta cívica. Nas primeiras buscas aos
arquivos reparei que no álbum do fotografias de1964 havia uma da tomada de
posse do jovem médico Camilo de Araújo Correia, então acabado de regressar do
serviço militar em Porto Amélia, e outras da sua apresentação ao Corpo de
Bombeiros. Mas havia mais coisas no arquivo que estavam relacionadas com a sua
acção, como era o jornal Vida Por Vida,
nascido em Agosto de 1956. Se não foi o mentor da sua criação, foi o primeiro director
deste histórico e já desaparecido órgão oficial dos Bombeiros da Régua, onde o
maior colaborador era o seu pai, o escritor João de Araújo Correia, que nele publicou as crónicas mais tarde editadas no inesquecível livro Pátria Pequena.
Devo dizer que Camilo de Araújo Correia
esteve apenas um ano a servir activamente os Bombeiros da Régua, mas isso foi o
tempo suficiente para os eleger como temas de crónicas no jornal O Arrais. Podia aqui citar abundantes
exemplos, onde lhes exaltou o heroísmo e a generosidade, mas há uma delas que
merece a minha solene evocação. Na sua crónica “De flor ao peito”, verdadeiro
balanço breve de uma vida cheia, ele recorda com grande carinho e emoção quando
os bombeiros foram esperá-lo a Coimbra com os seus carros vermelhos e reluzentes.
Com o seu humor, traduziu este seu
sentimento de fraternidade, com um justo receio de que “tocasse a sirene”!
Procurei mais encontros com
Camilo de Araújo Correia quando passei a convidá-lo para as cerimónias oficiais
dos aniversários dos bombeiros. Convites declinados e justificados por uma
progressiva debilidade física. Mas a sua conhecida gentileza, mantida até ao
limite, não o inibia de lhes dar resposta escrita como passo a exemplificar:
” Exmos. senhores Presidente da Direcção e Comandante
Agradeço muito penhorado o
honroso convite para as festas comemorativas do 125º aniversário dos nossos Bombeiros.
Infelizmente, não poderei cumprimentá-los por motivo de uma doença que nunca me
pode garantir máximo de saúde para o dia seguinte e, muito menos, a uma curta
distância.
Estou certo de que o cumprimento de tão aliciante programa será mais
uma honrosa página na digníssima História dos Bombeiros Voluntários do Peso da
Régua. Creiam na maior estima e simpatia.”
Podia não me lembrar de mais nenhum encontro com
Camilo de Araújo Correia, mas não
esqueço o último que me fará lembrá-lo em toda a minha vida. Aconteceu na sua
Casa de Santo Isidro, quando a doença o minava, mas não o seu cintilante espírito
e a sua boa disposição. Levou-me a procurá-lo um assunto relacionado com os
bombeiros da Régua: a nossa intenção de editar um livro sobre história da nossa
centenária associação e dos homens que nunca despiram a farda da generosidade e
do altruísmo. Na longa e demorada conversa, passámos revista a todos eles, a
esses anónimos heróis que, sempre a sorrir, me confessava que foram “sempre fiéis
à sua Corporação, à sua terra, a si próprios!"
Por motivo que não preciso de
revelar, Camilo de Araújo Correia não me podia ajudar a levar a cabo esta
tarefa, mas entregou-me as suas crónicas dedicadas aos bombeiros que gostava de
ver republicadas. Como sempre, não deixou de brincar, com um humor fino e benevolente,
para dizer-me que nesse outro lado do nosso mundo de seres mortais não devia
haver grandes fogos para os nossos bombeiros apagarem. Não deixei de lhe
manifestar a minha inteira concordância com um sorriso largo, enquanto degustava
um cálice de vinho fino que me ofereceu como um néctar raro e das melhores castas
durienses.
Já passaram alguns anos desde que
Camilo de Araújo Correia nos deixou, mas aquele cálice de vinho do fino… faz-me
lembrar um homem bom, um médico e um escritor de raros talentos e,
sobretudo, faz-me acreditar que há
pessoas que, como ele, continuam a
existir para lá da sua ausência física.
José Alfredo Almeida
..Um belo texto..
ResponderEliminarSimplicidade ..requinte..e uma ternura...
intensa ,,!!
GOSTEI MUITO...MUITO...!!!
Sensibilidade e cuidado... afetos e respeito pelo valor, pelo legado, pela pessoa...
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