sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Ombros de Hércules





"Já não há caminhadas, filas de homens valentes, que levavam a uva ao lagar em cestos altos, inclinados como torres bêbedas de sumo. Tão valentes e tão alegres eram, que dançavam debaixo do carrego - pena de passarinho para ombros de Hércules."


João de Araújo Correia in "Pó Levantado"

Diário de viagem

Foto:josé alfredp almeida



O poeta foi visto por um rio,
por uma árvore,
por uma estrada...



Mário Quintana

Espera de palavras

Foto:josé alfredo almeida




E nós à espera de palavras que digam o que não conseguimos dizer



Luís Ene

Cores do Outono

Foto: josé alfredo almeida

Pontes da Régua-782

Foto:josé alfredo almeida

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Douro por dentro

Foto:josé alfredo almeida


"É tão bom começar a manhã com tudo o que queremos ser neste dia. Olhar sem medo pela janela, ensaiar uns passos fora da pele. Já não somos nós, nem mesmo é nosso o dia.Tropeçamos nos olhos espantados à volta do que vemos, precipitamo-nos para dentro e é tudo o pouco que fizemos. Dizemos que a pele é a nossa casa, enumeramos as assoalhadas, a arquitectura sólida, as vantagens de grades nas janelas. Depois fica-se triste até ao fim do dia. Há quem faça compras ou coma chocolate, quem diga mal de todos, quem não acorde a espreitar pela pele como ser outro, mas ele está a dois passos, a respiração, a temperatura, o olhar, o corpo móvel que se afasta levando o horizonte e só nos resta sonhar com a manhã seguinte e todos os dias - todos os dias - mentimos para dentro da pele."

Rosa Alice Branco

Aquela janela

Foto:josé alfredo almeida

(Re)Conhecer a Régua-269


Foto:APIF|Nuno Resende

Pontes da Régua-779

Foto:josé alfredo almeida

Pontes da Régua-778

Foto:josé alfredo almeida

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Guardar no coração

Foto:josé alfredo almeida



Guarda os meus olhos a sul 
ou norte a este e oeste e junto ao mar 
a qualquer mar onde o azul te 
seja castanho 
Guarda o que te dei a 
ocidente e oriente
e no coração e na mente 
e em qualquer pensamento onde te 
seja profundo 
Guarda-me, em ti e no teu 
mundo como a única que te amou 
para além das direcções 


Dúlia Soares

Praticamente dia

Foto:josé alfredo almeida




mão tão feliz de ter tocado 
teu corpo atento ao meu 
desejo 




Herberto Helder

Barco na paisagem-202



   Douro, 1910

Pontes da Régua-777

Foto:josé alfredo almeida

sábado, 24 de setembro de 2016

Cartaz cultural - Emmy Curl




Com entrada livre e gratuita, no dia 24 de Setembro, pela 21.30 horas, no Teatrinho da Régua,  vai en-cantar Emmy Curl, a talentosa menina de Vila Real, que junta a música, artes plásticas e fotografia, a voz bonita e canções frescas, como Song of Origin (https://www.youtube.com/watch?v=y06VQkmlZeA ) e do Navia, o seu álbum* 


Emmy Curl e Vila Real


Gravou um videoclip ao pé de casa, entre vinhas crescidas e com a cidade onde nasceu em pano de fundo. A paisagem de Trás-os-Montes acalma-a e, ao mesmo tempo, dá-lhe energia. A cantora Emmy Curl, Catarina Miranda no bilhete de identidade, não renega as origens. É transmontana com muito orgulho, mas confessa que as auto-estradas que rasgam a natureza partem-lhe o coração.Gostava de mexer nas plantas, na terra e de misturar ervas com água que cozinhava numa sopa faz-de-conta que mostrava à avó. Ajudava o avô a plantar morangos no quintal e enchia os pulmões do ar fresco que Vila Real emanava por todos os poros, aconchegada entre montanhas, aninhada em paisagens alcatifadas pelo verde intenso da natureza.
Quando era pequena, Catarina Miranda andava pelos campos, tomava banho no rio e tinha um gravador com cassetes que registava o que ouvia e as vozes das aulas da primária. Uma vez por semana, pedia com jeitinho à professora para cantar com a amiga Ana Isabel uma canção da Disney que ambas decoravam para a ocasião especial, com direito a microfones e palco improvisados. 
ser cantora. Agarrava-se às guitarras que havia lá por casa, instrumentos da banda do pai arquitecto e guitarrista e da mãe professora e vocalista. O pai ensinou-lhe os primeiros acordes, a técnica de guitarra clássica foi aperfeiçoada no Conservatório Regional de Vila Real. Estudou canto lírico na mesma escola e aprendeu a colocar a voz. A inspiração brotava sem pedir licença da paisagem transmontana. Os dois quilómetros que separam a casa da cidade eram percorridos a pé vezes sem conta quando queria encontrar-se com os amigos. Os atalhos que a levavam ao destino tinham silêncios da natureza e muitas cores. "Tinha muito tempo para mim e a paisagem servia para reflectir, para meditar", recorda. De regresso a casa, passava para o papel o que lhe ia na alma. Emoções que não tardavam a transformar-se em músicas. Melodias cozinhadas em segredo. "Compunha para mim, não mostrava a ninguém." Hoje o país sabe o que faz. 
Transmontana com muito orgulho. Vila Real dá-lhe calma e, ao mesmo tempo, ajuda-a a recarregar baterias, pôr energias na ordem. "As nossas origens fazem-nos sempre muito bem." Aos 22 anos, é o que queria ser e muito mais. Cantora, compositora, intérprete, estilista e costureira de peças vintage, designer gráfica, apaixonada por fotografia e cinema. Catarina Miranda cresceu e tornou-se Emmy Curl no meio musical. Há uma semana, terminou a digressão de Origins e está a preparar um álbum que quer lançar no final do ano. Nasceu em Vila Real, onde regressa e de onde parte constantemente para Aveiro, onde agora mora, ou para outro sítio do país com palco marcado para mais um concerto. Parte sempre com mais energia e um brilhosinho no olhar que só o cenário transmontano é capaz de lhe dar. 


"Tenho um fascínio muito grande pela paisagem de Trás-os-Montes, não há paisagem assim em mais lado nenhum. Adoro o lado rural", conta. Património que, na sua opinião, merece ser preservado até ao tutano. Tem feito por isso, no estilo campestre das roupas que desenha e costura, nos videoclips que grava em Vila Real. Um deles ao pé de casa, num campo de vinhas alinhadas com a cidade ao fundo, na paisagem que todos os dias observava sentada no banco da paragem do autocarro, nas idas para a escola. Cenário gravado na fresca memória e que só podia resultar num filme. "Sou muito influenciável pelo sítio onde vivo", confessa.


(...)


O seu universo musical é místico, simbólico. "Acredito nas forças cósmicas, que existe um destino mas também um livre arbítrio", revela. Acredita que as coisas que têm de acontecer, acontecem de facto. E move-se num universo do dream pop. Voz suave, melodias que percorrem a guitarra, letras que falam de amor, de emoções, de relações. "As estruturas das canções entram facilmente no ouvido." O processo criativo parece fácil, mas não é. "Toco uns acordes na guitarra e canto o que me vem à cabeça." Depois afina-se aqui e ali até ao resultado final. Dream pop soa-lhe bem e faz jus ao lado sonhador que impregna na música que compõe em inglês. 
Voltar a Vila Real é como regressar ao ninho. "Sinto-me protegida." E os dias passam depressa: visitar a família, sair com os amigos, passear no parque, percorrer a cidade. Os bilhetes andam de mala em mala. Mesmo que para ali chegar tenha que dar muitas voltas, apanhar comboios e autocarros. O regresso às origens não tem data marcada. "Um dia quero montar um estúdio e gravar em casa." Seja lá onde essa casa for. 

Vila Real não está apenas na música que cria. As roupas também contam a sua história de menina do campo. Emmy Curl veste as roupas que desenha e costura com o nome de Emília Caracol. Tem um atelier no centro de Aveiro, com vista para a ria. Aprendeu a costurar sozinha, para desenrascar-se na vida, quando a vida lhe disse que assim tinha de ser. Recua várias décadas e a cidade natal estampa-se nesta forma de se expressar. Há rendas e flores nas suas roupas de "estilo campestre". Há uma camisola de seda bege com chumaços e três botões verdes com brilhantes e um casaco vintage amarelo mostarda estilo Chanel feito à mão no seu portefólio de moda. Emmy Curl não está quieta, mas Vila Real dá-lhe um sossego difícil de explicar. 


Sara Dias Olivira in jornal Público

Espera




Sonhei, ou prometeste vir buscar-me para um passeio na frescura verde do jardim da cidade? Espero-te. Por detrás desta meia-cortina olho, discreta e fixamente, a rua que te trará até mim. Tardas. Mas eu espero-te. Estou pronta. Sapatos de salto alto tornam-me mais élancée. Blusa a realçar a rigidez dos meus seios. Saia a condizer. Esmerei-me no penteado, moldura de um belo quadro que é o meu rosto perfeito. Vou pensando nas palavras escolhidas, há muito, para te dizer. Imagino as tuas, algodão doce, canto de rouxinol, perfume de violeta. Como soará, saída dos teus lábios sensuais, a expressão amo-te?

Espero-te.


Vila Real, 21 de Setembro de 2016
M. Hercília Agarez

Arte ubana-30

Foto:josé alfredo almeida

Postal do verão-41

Foto:josé alfredo almeida

Pontes da Régua-775

Foto:josé alfredo almeida

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

E vindimavam...





Nos dois primeiros dias de vindima não se ouvia, em toda a quinta, uma cantiga. Como se ouviria? Costuma-se dizer que ovelha que berra, bocado que perde… Só depois de embebido de suco até o queixo é que o mulherio cantava. Saía-lhe então da boca o cancioneiro do Douro em voz esganiçada:

Rio Doiro, rio Doiro,
Rio de tanto penedo,
Se não fosse o rio Doiro,
Não tomava amor tão cedo.

O meu amor é do Doiro,
Donde as águas correm bem,
Saiba-o eu e saiba-o ele,
Não no saiba mais ninguém.


De entre os homens que desciam do lagar para a vinha com o cesto vazio atravessado na troixa, respondia às vezes o mais cantador:

Rio Doiro, rio Doiro,
Em teu centro canta a cobra.
Quanto mais o mundo fala,
Mais o nosso amor dobra.

Casavam-se estas cantigas, asperamente entoadas, com a paisagem de horizonte estreito, o trabalho difícil na terra e no rio, o amor e o vinho violentos, a poesia de uma flor aberta entre rochas, debaixo de um céu seco…


(...)


Ao entardecer, despegavam da vinha as vindimadeiras. Iam dormir à aldeia. Mas, de passagem pelo quinteiro, liso e espaçoso, apetecia-lhes bailar.

-Vá, tio Ambrósio, pegue no harmónio.

É só um bocadinho...Que não queremos ficar atrás das outras.
As outras eram as serranas, mulheres de capucha e cesta de silvas, vindas da Gralheira e outros pontos altos para vindimar.. Mulheres que apenas conheciam a neve e o centeio, olhavam para as uvas com espanto dobrado de ano para ano. Àquela hora, nas outras quintas, animavam os terreiros com danças de roda anrigas.
-Vá, tio Ambrósio, toca a pegar no harmónico!

O tio Ambrósio, por desconcerto da natureza, era o tanoeiro pançudo. Escondia a barriga debaixo do harmóico e tocava, que parecia outro.

Entre as dançarinas, velhas e novas, quase todas feias, havia três raparigas demasiado mimosas para trabalhos rurais. Eram as Garcias, flores deslumbrantes, meigas esculturas, filhas de um pedreiro descoroçoado da arte por amor ao vinho. Descia à quinta, ao cair da tarde, para as guardar, mas esquecia-se...
Parecia que tinha ido beber. Com os olhos vítreos, prometia facadas a quem desonrasse as filhas... Henrique não as desonrovas, mas, em boa verdade, não as podia ver sem alvoroço da alma e do sangue. Eram três graças perfeitas, filhas do Olimpo, mais do que do pedreiro. E vindimavam...



João de Araújo Correia in "Casa Paterna"

Barco na paisagem-200

Foto:josé alfredo almeida

Pontes da Régua-774

Foto:josé alfredo almeida

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Sábio, o lavrador

Foto: Alvão


    Também ele tem a sua sabedoria. Não aquela que as nenhumas ou poucas letras lhe ensinaram e de que pouco lhe valeram. Nem história, nem geografia. Matemática só a que lhe permitisse conferir as cabeças do gado caprino, antes do regresso a um aconchego sem aconchego. O seu alfabeto é a terra. Sua literatura o Borda d’água ou o Seringador. Desde criança foi acumulando saberes. Intuitivos e miméticos. Descalço, de roupa remendada e pouca para o frio, levou gados a pastos próximos ou distantes, com a sua côdea de pão em saco surrado, com o companheiro de quatro patas. Sozinho, na solidão dos montes. Foi um menino diferente, sem brinquedos nem amigos humanos. Sua casa, além do casebre, a amplidão da natureza. Seu tecto o céu. Ou um telhado de telha vã, permeável a chuva e sol, a frio e a calor.

    Com seus pais aprendeu a semear batatas, medindo a distância a palmo. A cavar a terra. A adubá-la. Deles herdou aquela intuição de adivinhar trovoadas, de aprender as horas pelo sol relógio, de sentir no ar um cheiro a ameaça de míldio. E de oídio. Franzino embora, que não era farta a mesa, alomba com o pulverizador cheio de calda bordalesa para dar guerra à bicharada destruidora. Vai ao monte por lenha abandonada. Empunha o machado, para cortá-la para o lume, com a ligeireza de quem pega numa galinha a ser sacrificada em dia de festa.

    Fez-se homem sem ter sido criança. Familiarizou-se com todos os trabalhos agrícolas. Em troca de magra jorna, de salgada sardinha, de copo de vinho. Aturou patrões. E feitores, por vezes ainda mais exigentes, como quem se desforra de servidão não esquecida.

    Da vinha sabe tudo. De cor e salteado. Faz disso gala. Não falha um enxerto, uma poda. Ergue varas com perfeição de rendilheira. Sulfata. Arranca os ladrões. Mesmo não lhes pertencendo, quer às videiras como filhas. Quer que elas botem figura quando chegar a altura do exame, ou seja, da produção. Quere-as generosas, úberes. Cobiçadas como belas jovens casadoiras. Lá estará para se besuntar com o roxo e o branco melados e doces. Descerá socalcos como quem leva às costas a pedra que Sísifo empurrou. Saudades dos vindimos que o plástico destronou. Deixá-lo. Vamos ao lagar, depois da ceia. Corpos suados exorcizam cansaços. Cantigas e música marcam o ritmo das pernas. Pisa que pisa. Perna acima, perna abaixo. Já cheira a mosto. Cheiro que embriaga tanto como o desejo das moças, já recolhidas nas cardenhas, em vigílias excitadas.


Vila Real,20 de Setembro de 2016
M. Hercília Agarez

Ola, Outono

Foto: josé alfredo almeida



Uma borboleta amarela?
Ou uma folha seca
Que se desprendeu e não quis pousar?



Mário Quintana

Pontes da Régua-773

Foto:josé alfredo almeida

Pontes da Régua-772

Foto:jose alfredo lmeida

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

António da Silva Correia

António da Silva Correia


"Meu pai, embora afastado, por mil desilusões, da política militante, quis acudir à República no dia 3 de Fevereiro. Comprometeu-se com o major Varão, que lhe entregou, ao passar pela Régua, o comando civil do concelho.
Sufocada a revolta, andou meu pai de cadeia em cadeia, modo de dizer, até entrar na Penitenciária como grande criminoso.
Com a prisão de meu pai, bastante prejudiquei o meu último ano do curso de Medicina. Enquanto vi preso o meu velhote, que então contava 58 anos, não saí de Lisboa. Ia visitá-lo todos os dias, levar-lhe à prisão esperanças de liberdade.
Mal cheguei a Lisboa, tratei de procurar, na Parede, o Dr. António José de Almeida. Procurei-o para desabafar. Ver preso o meu pai, desiludido da Política sem ter perdido a fé republicana, era ver preso um inocente, arrastado a uma rebelião mal organizada, sem jogo suficiente para sair vitoriosa.
Não vi criado nem criada na casa da Parede. Que me abriu a porta foi  a esposa do antigo presidente da República. Disse-me que o marido, embora muito doente, me receberia.
Fui à presença do paladino. Vi-o deitado em modesta cama e, tão desfigurado, que apenas o reconheci. Tinha envelhecido a ponto de me parecer centenário. Da antiga barba e das antigas mãos, comparsas da sua oratória, restava uma poalha branca e dois molhos tubérculos presos pela rama.
-A noite passada foi horrível. Mas, a que aí vem...vai ser pior.
"Nada posso fazer pelo seu pai. Mas, vou dar-lhe um conselho, que talvez dê resultado. Não  queira intermediário. Defenda o seu pai, conversando com o instrutor do processo. O senhor tem boa apresentação. Basta-lhe para ser recebido e escutado.
"Agora, uma palavra: Portugal não morre. Debaixo do jugo espanhol, durante sessenta anos, sacudiu-o...O povo português é invencível."
Segui o conselho de António José de Almeida. Conversei, na Penitenciária, com o coronel Schiappa de Azevedo.Pediu-me que lhe apresentasse, escrito por mim, um relatório da acção de meu pai no movimento. Apresentei-lhe o relatório. No dia seguinte, estava o meu pai na rua.
- O seu pai deve-lhe a liberdade. Não a deve a mais ninguém. O senhor, se não quisesse ser médico, seria um grande advogado."

14-8-74
João de Araújo Correia in "Pontos Finais"  

Pontes da Régua-771

Foto: josé alfredo almeida

Barco na paisagem-189

Foto:josé alfredo almeida

Douro antigo-Medrões



terça-feira, 20 de setembro de 2016

Minha luz

Foto:josé alfredo almeida


De muitas formas se diz a
 minha luz
De muitos modos me visita o
meu anjo
Vem devagarinho ......
molda-me com esperas......
enfeita de estrelas
os espelhos onde
me deito...
por fim, numa pausa
de murmúrios, numa paleta
de cheiros bem fortes
deixa o meu corpo feliz...


Victor Oliveira Mateus

Barco na paisagem-188

Foto:josé alfredo almeida

Pontes da Régua-770

Foto: josé alfredo almeida

Arte urbana-29

Foto: josé alfredo almeida

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Inesquecível viagem na Linha do Corgo





"…Quem desembarca na Regoa e entra no comboio para as Pedras Salgadas, ao começar a subir as alterosas ravinas que o Corgo sulcou experimenta uma sensação de bem-estar, de admiração e alegria que lhe suggestiona qualquer coisa nova e inesperada
O comboio, n'um balouçar que tem o seu quê de berço, embala a gente sem o sentir e lá vae perfurando panoramas cada vez mais diversos e mais bellos. Aqui apparece-nos a graça gentil d'uma horta viridente, acolá a severidade de lombas elevadas, pináculos agudíssimos; aquilo que a phylloxera não devastou e queimou como raio e a coragem e o aprumo do proprietário ressuscitou, apresenta-se-nos em amphitheatros, que outr'ora tanta riqueza demonstrava; a imponência dos castanheiros, o avelludado dos pinheiros, o rendilhado dos sabugueiros e o assetinado do amaldiçoado tabaco vêem substituir na rapidez do caminhar aquela magica cultura, para nos surgir ao collear um meandro do rio.
Os casaes alvejam ao sol, e os campanários das freguezias, uns no alto dos outeiros e outros no fundo dos valles, parecem ao longe bandos de pombas espavoridas pelo silvo da machina.
Chega-se a Carrazedo e alli a visualidade é de mágica thetral: não nos parece real o que vêmos, mas sim um sonho! Parado na gare, o comboio espera pelo descendente; ei-lo que foge por sobre a nossa cabeça e precipita-se, desgrenhando a pluma de fumo sobre aquelle que o espera; de repente esconde-se, reapparece, descendo sempre até que se approximam.
Prosegue-se em direcção a Villa Real… faltam minutos para a vermos.
Ninguém, por mais força imaginativa de que disponha, é capaz de affirmar que não excedeu toda a sua expectativa o maravilhoso sonho que vê realizado.
É impossível descrever-se.
Gaba-se o céu de Itália, especialmente o de Capri, porque imprime à paisagem um tom de lilaz em todo o ambiente; pois ao vislumbrar a casaria, amparada pela magestade do Marão, se o Sol bate em cheio no kaleidoscópio da vila, parece-nos tudo banhado em cor de rosa a evaporar-se deante de nós.
É ampla a entrada para a villa pela Avenida do Caminho de Ferro.
Lá em baixo o Corgo ferve por entre as penedias e lá vae até ao Douro… …”.

 Domingos Ramos in “Ilustração Transmontana”, 1909

Pontes da Régua-769

Foto: josé alfredo almeida

Pontes da Régua-768

Foto:josé alfredo almeida

Barco na paisagem-187

Foto: josé alfredo almeida