sábado, 31 de maio de 2014

Memórias de um profissional do comércio






"O autor deste pequeno livro, que resolveu oferecer gratuito aos seus amigos, chama-se Silvano Vitorino Machado, natural da freguesia de Louza, concelho de Moncorvo, distrito de Bragança. Nasceu em 26 de Dezembro de 1884; tem, pois, ao fazer este livrinho, 70 anos.
Filho de pequenos lavradores, meus pais mandaram-me aos 7 anos para a escola, onde andei até aos 11 anos para fazer o exame de Instrução Primária.
Quando estava com o tal exame feito, meu pai pediu a um nosso patrício que vivia no Porto para me arranjar uma casa para marçano.
Aquele nosso patrício, decorridos alguns meses, escreveu a meu pai que já tinha arranjado casa. Bem entendido, meu pai tratou logo que recebeu a notícia de me preparar a bagagem: um fato de surrobeco de cor amarelada, um pare de butes com três centímetros de alto, que eram os que os mestres sapateiros lá da minha aldeia sabiam fazer, dois pares de ceroulas e duas camisas, tudo dentro de uma saca de amostras.
Combinou-se o dia da partida e meu pai acompanhou-me à estação do Freixo, pois é esta estação que serve a minha aldeia. 
(....)
Falando depois com um meu patrício, que era o guarda reformado Neto, este aconselhou-me a deitar um anúncio no "Jornal de Notícias". Ele mesmo se encarregou de deitar o anúncio, e passados quatro ou cinco dias o tal Sr. Neto apareceu e mostrou-me uma carta da Régua, do Sr. José Lopes da Silva, a rogar-me vir trabalhar para sua casa- Escrevi-lhe nesse mesmo dia e disse que ia no dia 21 devia estar em sua casa. Assim foi. No dia 20, era um domingo, parti de Gaia para Régua, onde cheguei às 10 horas e tal da noite, com um frio terrível.
Quando me apeei do comboio, ouvi os corretores: "Hotel Douro"!"Hotel Itália"! Perguntei a um carregador qual daqueles dois hotéis seria o mais barato, e ele de pronto  me respondeu que o mais barato era o Hotel Itália, por isso chamei pelo corretor do tal Itália e dei-lhe ordem para levar para o hotel a bagagem que naquela altura já era uma pequena mala, de pouco peso, pois a roupa era também pouca. Perguntando ao corretor se conhecia o Sr. José Lopes da Silva, ele disse-me que esse senhor era o dono do hotel para onde eu ia e que também tinha uma mercearia.
Chegado ao hotel ia cheia de frio e pedi que me fornecessem um cálice de bagaceira, que foi servido pela criada Joana Jeitosa e me mandou pelo corretor ensinar o quarto onde iria dormir. Pedi-lhe mais um cobertor que ele botou na cama e em breve aqueci e confesso que dormi bem.
(...)
Isto deve-se ter passado em 10 ou 15 de Janeiro, o estado de saúde do Sr. José Lopes piorava de dia para dia, tendo falecido em 2 de Fevereiro de 1902. Nesse dia  estava a Régua cheia de neve com mais de dez centímetros de altura nas ruas da vila.
A morte do Sr. José Lopes produziu a maior consternação não só na família como também em todos os habitantes do concelho do Peso da Régua, onde era geralmente estimado.
(...)
Uma vez restabelecido comecei com a maior vontade a lutar pelo engrandecimento da Casa Viúva Lopes, que se tornou uma das melhores da Régua.
(...)
A firma Silvano & Cunhados marcou na vila da Régua o primeiro lugar. Em 9 de Agosto de 1953, fomos vítimas de um incêndio. Nesse dia, estávamos eu e meus filhos no terraço, eram cerca de 9 e meia da noite, ainda quase dia. Uma das minhas filhas, disse-me: - "Ó Paisinho, cheira.me aqui a chamusco". Fiquei inquieto. Mandei à moagem, onde andavam carpinteiros a trabalhar que há pouco tempo tinham saído do serviço, mas lá nada havia e o cheiro continuava mais activo, e uma criada veio dizer: "É nas águas furtadas, que se vê aqui da escada um grande clarão". Fui às águas furtadas e vi as roupas das criadas a arder.
Os populares invadiram a casa, chamaram-se os Bombeiros que demoraram quase uma hora, e desprovidos de uma escada grande, com fracas mangueiras e também falta de água, que nessa altura se fazia sentir, o fogo tomou grandes proporções de forma que em pouco tempo o prédio estava todo em chamas.
Ainda a marcar esta grande desgraça, houve a infelicidade de no incêndio ter morrido um bombeiro, o infeliz João dos Óculos, bom rapaz e destemido bombeiro que perdeu a vida na sua dedicada profissão."

Fevereiro de 1955   

Silvano Vitorino Machado

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