Os beijos do rio

Foto: josé alfredo almeida

Li algures que, no Douro, as encostas inclinam-se a beijar o rio. Pareceu-me disparate, erro de perspectiva, talvez confusão sentimental. O que eu vejo é o inverso, o rio a beijar as encostas, estendendo-se ao longo do seu corpo, venerando-lhes as formas, percorrendo-as devagar como a língua de um amante competente e incansável. Beija-as nos pés e no regaço, nas suas curvas indecentes, entra-lhes às vezes em certos recantos muito íntimos e silenciosos. Entremeia cada beijo com doces murmúrios, histórias sobre as funduras da terra, de onde ele vem, e de como corajosamente desbastou caminho para chegar até ali e se prostrar a seus pés. Um sedutor, enfim. Ainda mais tão vivo em brilhos e reflexos, exalando a frescura própria dos eternos viajantes, apresentando-se como um amante servil. É que, na verdade, estas encostas merecem. São rainhas coroadas por divina autoridade, vestidas com manto finamente bordado por gerações de talentosos artesãos, com prémios de beleza e provas de fertilidade que entontecem o mundo.

E assim, beijando-as, o rio as mantém despertas e húmidas, com a terra a latejar e o fruto cheio e palpitante. Mas, ai delas, que confiam! Num repente pode acontecer que ele acorde desvairado, cheio de impulsos que fazem rebentar se não se cumprirem. Musculado, ganha em força o que perde em tino. Vai-se o charme, a languidez, a graça, o inocente pulsar. E doido se torna o beijo, mordendo, ferindo, arrancando, arrastando. Ficam as encostas despedaçadas, quem sabe no arrependimento de se terem entregue àquele traiçoeiro amante. Uma língua tão doce e tanta fúria nos dentes.

Olga Magalhães